As sombras de Luz

Kokoro levantou-se ao som irritante do despertador. Só lhe aptecia fazer como nos desanhos animados, pegar num martelo e partir o raio do despertador! Com passos lentos e pequenos, foi até á casa de banho. Tomou banho, secou-se e vestiu-se. Tudo naquela manhã parecia normal. Sentia-se o cheiro do café a emergir dos corredores, o aroma das torradas com manteiga que a sua mãe fazia para ela e...e nada. Absolutamente nada de nada. Vestiu o uniforme da escola, sentou-se em frente ao espelho e fez os seus tótós, calçou as meias e saiu do quarto na direcção da cozinha. Já estava habituada ao silêncio da manhã, mas aquele silêncio era mórbido. Sabia que nunca mais iria ouvir a sua mãe a chamá-la por estar atrasada, sabia que nunca mais iria ouvir o seu pai a atender as chamadas do seu trabalho já irritado, sabia que nunca mais os seus pais iriam entrar por aquela porta.

-Por um lado é bom, não é?- Disse ela num murmúrio.- Pelo menos já não discutem.

Colocou a pasta da escola em cima da mesa e foi até aos armários. Remecheu e encontrou um pacote de leite achocolatado.

-Isto deve servir por agora.- Olhou para o relógio.- Bem, está na hora de ir.

Pôs a palhinha no pacote e bebeu, pegando na pasta e indo para a entrada para se calçar. Ao abrir a porta quase que sorriu. O dia estava caloroso, não havia nuvens no céu e conseguia-se ouvir os pássaros. Fechou a porta á chave e desceu as escadas.

-Ao chegar á escola tenho de ver a minha turma. Só espero não ter ficado na mesma turma que a Sakura. Ela é tão irritante.-Saio do prédio e caminhou pelo passeio.- Depois da escola tenho de ir ver de um part-time e tenho de ter cuidado para não ser descoberta pela escola. Por que carga d'água é que os alunos não podem ter um trabalho? Que retrógados.

Passou por um parque infantil e vi os baloiços que não tinham ninguém. Olhou para o relógio e viu que ainda tinha tempo de baloiçar um bocado. Foi a correr para os baloiços, atirou a pasta para o ferro e sentou-se.

-Uns cinco minutos que vão valer a pena.

Dito isto começou a dar balanço. Quanto mais balanço dava mais alto ia, sentia-se livre. Quando atingiu a altura máxima saltou do baloiço, aterrando em pé. Lembrou-se que a sua mãe sempre a repreendia por fazer isto, dizia sempre que lhe pregava um susto de morrer, o seu pai, antes de começar as discussões, dizia que, quanto mais alto fosse mais alto os seus desejos iriam ser proclamados, que quanto mais alto fosse mais perto estaria do seu mundo. Ao voltar á realidade, olhou para o relógio. Entrava dali a 10 minutos e tinha que ir ver as turmas. Pegou na pasta e saiu do parque a correr.
Quando chegou á escola viu uma multidão no quadro de turmas.

-E agora? Como é que eu vou chegar á frente?-Pensou por um bocado.- Já sei!- Deu um berro.- UM RATO!!!-Viu, tanto rapazes como raparigas, a dispersarem-se do quadro e a correr para as salas.- Foi um momento particularmente engraçado.

Procurou pelo seu nome das várias listas e por fim encontrou-o. Estava na turma D e, por sorte, Sakura estava na turma A. Viu os nomes e reparou que não conhecia ninguém, mas também não lhe interessava conhecer. Só iriam dar problemas e confusões. Mas viu um nome que lhe soava familiar: Futaru Kinja. Tinha a ligeira impressão que já o conhecia, mas não sabia de que lugar. Ouviu o toque e foi para a aula, calmamente. Ao entrar viu que o seu lugar do costume estava livre. Caminhou para a última carteira da fila ao lado da janela. Ao pôr a pasta em cima da mesa, alguém pôs a pasta dele primeiro.

-Hm?- Kokoro olhou para a pasta e depois olhou para o dono da pasta.

Um rapaz de cabelo vermelho escaldante e de uns olhos frios como gelo fintava Kokoro. Puxou a cadeira e sentou-se como se ela não estivesse ali. Tirou os livros e os cadernos e começou a escrever. Kokoro indignada, cruzou os braços.

-Sabes, esse era o meu lugar.
-Era, dizes bem.
-Era e é!
-Não vejo o teu nome escrito por aqui, miúda!-Enquanto falava escrevia, não fazendo contacto visual com os olhos de chocolate de Kokoro.
-Mas olha que por acaso até tem.

O rapaz olhou para ela, e, Kokoro, sentiu um frio de cortar a respiração. Devia ter sido só impressão sua. Para provar que estava a dizer a verdade, levantou o tampo da mesa e os dois viram escrito a caneta de acetato "Kokoro Wakeshite".

-See?- Disse ela com um ar triunfal.- Agora fazes o favor de sair daí?
-Hm, não me aptece.-Voltou a escrever.- Agora está-se bem aqui. E porque é que tu não vais para a carteira da frente?
-Porque a minha carteira é essa! Tu viste que eu vinha para aqui e vieste por a tua pasta mesmo quando eu ia por a minha, não é estronço?!
-Hei, tem lá calminha com o que me chamas, miúda.
-Aqui a miúda não vai ter cuidado nenhum até o menino que está na mesa da miúda não der o baza!
-Fala bem, miúda! Estamos numa escola não na rua.
-Se estivessemos na rua nem te punhas de pé.-Kokoro começou a passar-se.
-Ai sim? E o que é que me farias se eu estivesse na rua contigo, só nós os dois e mais ninguém?
-Vou poupar-te a promonores, não quero que a tua mente dê demasiadas voltas, pode ficar enjoada. Agora, sai daí!
-Já disse que não quero. Qual foi a parte que não percebeste?
-A parte do "não", porque não está no meu dicionário.
-Ah não?
-Não. Faz o obeséquio de saltar do meu lugar antes que me passe!
-Ainda não estás passada? Quer dizer que isso é só parte do teu mau-feitio todo? Que cena. O que é que os teus pais têm de aguentar logo de manhã.

Kokoro ficou petrificada com as palavras do rapaz. Os seus pais não a teriam de aguentar logo de manhã, pois não. Pegou na pasta e, silenciosamente, sentou-se na carteira da frente. Tirou os livros e os cadernos. O rapaz ficou a olhar para ela, ou pelo menos para o pescoço dela.

-Hei...
-Bom dia, meninos! Espero que estejam bem dispostos e prontos para começar a semana em grande. Quero apresentar-vos um novo aluno, ele veio de Kyoto. Por favor dêm as boas vindas a Futaru Kinja! Kinja-san, por favor vem até aqui e apresenta-te aos teus novos colegas.

O rapaz que estava atrás de Kokoro levantou-se, subiu até ao estrado e escreveu o seu nome do quadro.

-Chamo-me Futaru Kinja e sou novo nesta escola e cidade. Espero ser bem-vindo.

Todos bateram palmas. Todos? Nem todos. Kokoro estava perdida nos seus pensamentos mais obscuros. "O que é que os teus pais têm de aguentar logo de manhã."idiota, pensou ela. Levantou a cabeça e viu novamente aqueles olhos de puro gelo pousados sobre ela. Tentou colocar-se da defensiva mas aquele gelo todo era demasiado para ela. Sentia-se fraca.

-Kokoro-san, como representante da turma, tens o dever de mostrar a escola ao novo estudante. Conto contigo.-Disse a Sensei.
-Não é preciso. Eu sei ver a escola por mim mesmo. Não preciso de amas.- A voz sou-lhe seca, atrás de si.
Kokoro virou-se e pôs-se de joelhos na cadeira.
-Está descansado que eu também não pretendia mostrar-te a escola, idiota! Preferia ser espezinhada pelas senhoras do refeitório quando á pizza para o almoço!- Dito isto virou-se para a frente e recompôs-se.- Pode continuar a aula, sensei.

A turma toda tinha os olhos cravados nela.

-Muito bem. Depois desta opinião, abram os vossos livros na página 10. Momoko, começa a ler.

Kokoro olhava o seu livro, mas não lia. O rapaz que tinha atrás de si dava-lhe ma certa raiva. Mas ao mesmo tempo, um certo gozo. A verdade é que nunca se tinha dado mal com ninguém, portanto ele era uma espécie de experiência nova. Suspirou. Sabia que depois desta aula teria de ir com Futaru percorrer a escola inteira, a principio pensou que não fosse muito mau ser representante de turma mas agora...também seria rápido, só tinha de leh mostrar os sitios mais importantes para os alunos, como por exemplo a biblioteca e a associação de estudantes. Depois disso, iria a uma livraria. Preciava de ler e já algum tempo que os seus livros estavam nas prateleiras e, além demais, a livraria precisava de uma nova empregada. Era a oportunidade perfeita para Kokoro. Tinha tudo o que necessitava no emprego: livros, dinheiro e emprego, sobretudo.
Ouviu o toque da campainha, arrumou os livros da pasta e virou-se para Futaru. Para sua surpresa, o rapaz estava a olhar fixamente para ela. Aqueles olhos frios voltaram a dar-lhe aquele arrepio na espinha.
- Anda. Vou-te mostrar os sitios mais importantes aqui na escola e depois o meu deve de representante estará cumprido.- Levantou-se e esperou que ele fizesse o mesmo.- Vens ou não?
Ele continuava a fitá-la com os olhos gélidos.
- Alô? Estou a falar contigo!- Esperou mais um bocado.- OK, senão respondes eu vou andando.
Ao dirigir-se para a porta, esta de repente fechou-se.
- Mas que raio...?- Posou a pasta numa secretária próxima e tentou abrir a porta.- Podes ajudar-me, se faz favor? -Continuava a tentar abrir a porta.
Futaru nem se mexeu. Kokoro começou a bater na porta na esperança que alguém a ouvisse, olhou em redor e depois reparou que ela e ele estavam sozinhos na sala, ninguém estava ali com eles. Quando é que eles tinham saído assim tão depressa? Ouviu uma cadeira a arrastar-se pelo chão e virou-se para Futaru. Podia jurar que ele, ainda á 2 segundos, estava sentado na cadeira junto á janela e não frente a frente com Kokoro.
- Isso foi rápido. Agora ajuda-me.-Voltou-se de costas para ele e recomeçou as suas tentativas de abrir a porta.
Conseguia sentir o hálito frio dele no seu pescoço. Arrepiou-se mas continuo atenta á porta. Sentiu o seu cabelo a ser desviado e aí parou.
- O que estás a fazer?- Perguntou ela num murmúrio.
- A tornar a tua vida mais doce...- Passou a sua lingua pelo pescoço dela.
Kokoro virou-se e encostou-se á porta, ainda com as mãos no puxador. Ele estava próximo, demasiado próximo.
- Eu não preciso que ela se torne mais doce! Abre a porta para eu poder sair daqui!
- Sim, sim. E depois, tu, vais a correr feita menina da mamã até ao Director da Escola dizer "Oh senhor director nem imagina o que me aconteceu! O novo aluno da minha turma tentou fazer com que a minha vida se tornasse mais doce! O que é que eu faço? Por favor, ajude-me!" e depois o Director iria responder "E como é que isso aconteceu? Quem é o novo aluno? Ele vai levar um processo disciplinar ou até mesmo sofrer expulsão da escola!". Não achas essa conversa um bocado...como hei-de dizer...parva?- Futaru aproximou-se, como se já não estivesse demasiado perto.
- O que é que vais fazer?- Perguntou Kokoro com a voz um bocado trémula.
- Abrir a porta.- Colocou a mão sobre as de Kokoro e, como se nada fosse, abriu a porta.- Para quê tanto alarido, miuda? Tinhas medo que eu tomasse conta de ti nesta sala? Sozinhos?
Kokoro pegou na pasta e, de propósito, deu com a pasta na cabeça de Futaru.
- Baka!
E saiu disparada da sala de aula, sem fazer nenhuma visita guiada á escola. Por outro lado, Futaru, continuava na sala. Sorriu maliciosamente e disse baixinho:
- Isto é capaz de se tornar num jogo interessante.